Aos 31 anos, sem nunca ter tido um emprego formal, constantemente longe da família por conta da profissão e também por não ter tido um relacionamento amoroso duradouro, Springsteen entrou na vida adulta sem um sentimento de pertencimento à ela. E ele estava cansado de não jogar esse jogo. Em "The River", ele buscou entender os relacionamentos do mundo adulto, como as pessoas se conectam umas as outras ou como o título de uma das canções no disco, Bruce procurava entender como funcionam "Os Laços que Unem". O texto abaixo é uma viagem ao coração de um dos discos mais importantes da carreira do cantor.
The River foi o primeiro álbum em que assuntos como casamento e família estiveram em destaque. E não é à toa. Bruce procurava manter a cabeça ocupada, mas o tempo estava passando e ele não conseguia mais ignorar o vazio que estava sentindo. Os piores dias eram aqueles após o final da turnê de um disco. Fora da estrada e do estúdio, não se sentia focado. Sem a adrenalina ministrada pelos shows, aquilo que o corroía em seu intimo ganhava espaço e aflorava. Os membros da banda estavam começando a formar famílias, enquanto Bruce convivia com as dezenas de rompimentos de namoro. Mesmo quando estava em um relacionamento, Springsteen não conseguia deixar de lado o costume de se isolar. Do dia para a noite, o namoro acabava. Muitas das vezes era ele que inventava alguma desculpa, colocava defeitos em garotas comuns e ia embora. O medo estava naquilo que aquelas garotas representavam: as responsabilidades de uma vida de compromisso e responsabilidades familiares. Agora, quieto e angustiado pelo descanso forçado de seu trabalho, aquele vazio que Springsteen adentrava para se refugiar estava assombrando-o.
"O Rio", a metáfora que representa a vida familiar, a vida que está sempre se movendo, seja por momentos bons ou momentos de seca, de turbulências ou alegrias, e principalmente a vida de responsabilidades a dois; era esse rio que Springsteen queria percorrer, nem que no momento, fosse apenas usando os sapatos (ou os barcos) de seus personagens.
As sessões de gravações do que viria a ser o quinto álbum de Springsteen começaram em março de 1979, no Power Station, um estúdio de gravações em Nova York que tinha uma sala do tamanho de um ginásio, com assoalho de madeira, projetado para capturar o som de uma banda de rock tocando no palco. Em setembro, ele estava finalizado. Com o nome de "The Ties That Bind", o disco que contava com dez canções e tinha seu lançamento planejado para o Natal daquele ano foi entregue a gravadora e seguiu o processo de produção de sua capa. Porém, poucas semanas depois, Bruce mudou de ideia e pegou o disco de volta.
"Não era grande o suficiente, não incluia o bastante. Eu queria que incluísse tudo o que eu fiz, das canções "de festa" até as que eu me aprofundava nos meus personagens. E eu não achava que dava pra fazer aquilo direito em apenas um disco. Eu peguei o disco de volta não com a intenção de fazer dois, mas com a intenção de fazê-lo melhor."
O cantor começou uma nova série de gravações no Power Station em outubro de 1979 que duraram até o meio de 1980, um longuíssimo tempo dentro do estúdio. Nesse período, foi tomada a decisão de tornar o álbum um disco duplo. Também nesse período a banda quase perdeu Stevie Van Zandt, irritado com a forma como as sessões avançavam, ou melhor, como não avançavam. Ao contrário da maioria dos membros da banda, Bruce era solteiro, e ainda por cima não tinha a família por perto. No momento, a música era a única coisa que ele tinha pra se ocupar, o que não era uma boa notícia para os membros da banda. A busca obstinada de Bruce pela perfeição estava levando-os a loucura. Horas e horas eram usadas para trabalhar uma música até que Bruce decidisse que a passagem do dia anterior fosse a melhor de todas. Ou então, Bruce descartava as primeiras 30 tomadas porque havia pensado em uma melodia melhor ou palavras diferentes para o refrão. E no dia seguinte, a coisa poderia ser pior: Springsteen traria para o estúdio novas músicas em seu caderno.
"Eu queria um disco que combinasse o aspecto divertido do que a banda vinha fazendo com as histórias que eu contava."
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| Clarence Clemons e Bruce Springsteen na The River Tour |
Para os fãs, as longas sessões de gravações foram maravilhosas, pois geraram grandes outtakes, lançados oficialmente quase 35 anos depois, na coleção "The Ties That Bind", de 2015. No "The River" entraram vinte canções.
A primeira delas é a própria "The Ties That Bind". A primeira vez que se ouviu falar dela foi durante uma passagem de som durante a turnê "Darkness On The Edge of Town". Bruce resolveu revisá-la, afinal, a letra é praticamente a ideia geral do que está por vir na quase uma hora e meia de música pela frente. "Você consegue andar na linha e lidar com os laços que unem?" / "Prefiro sentir a dor por dentro do que sentir o vazio que o coração esconde". Retrabalhada diversas vezes, desde outubro de 1978 até chegar a sua versão final em meados de junho de 1980.
A segunda faixa do disco, "Sherry Darling", realça a parte festiva e divertida do álbum. Nela, o personagem reclama com sua amada Sherry sobre a mãe dela, sua sogra. "Sherry meu amor por você é verdadeiro, mas eu não assinei pelo pacote completo. e meu bem, esse carro não é grande o suficiente para mim e ela". A canção também já era conhecida, pelo menos por quem frequentava os shows da era Darkness. Gravada em 1976, e retrabalhada em junho de 77, Bruce trouxe-a de volta para o Power Station em maio de 79 e finalizou-a em abril de 1980.
Na sequência vem uma das canções mais subvalorizadas em "The River": "Jackson Cage". O rock and roll que vai ficando furioso a cada estrofe é a história de quem vive na "Jaula de Jackson". Muitos acreditam que é uma referência à cidade de Jackson, no Michigan, que na época, tinha a maior prisão dos Estados Unidos. Bruce usou a referência da prisão para representar a inequidade social e econômica de que o casal da história não consegue escapar. "Por que sempre tem um outro dia, e vai ser sempre desse jeito".
"Eu estou condenado a vagar sozinho por esse mundo?" Essa é a pergunta que "Two Hearts", a quarta música de The River, tenta responder com um toque de esperança. Com o apoio de Little Steven nos vocais, os primeiros registros de ensaios da canção em estúdio são de fevereiro de 1980, onde foram gravadas oito versões. A versão do disco é datada de abril daquele ano.
Aumentando a lista de músicas reaproveitadas está "Independence Day". A balada escrita durante as sessões de "Darkness On The Edge of Town", é sobre um filho deixando o lar para não se tornar o homem que ele teme vir a ser. Ainda conta com muitas frases de cunho pessoal do Bruce, que teve uma relação conturbada com o pai. "Eles não vão fazer comigo o que eu vi eles fazerem com você" / "Não tinha jeito dessa casa aguentar dois de nós, acho que somos muito do mesmo tipo" / "Todos os homens devem seguir seu caminho no Dia da Independência".
Springsteen já havia desistido de muitas músicas por serem "pop demais" e algo dentro de si achava que elas destoavam de suas composições. Ele já havia desistido e doado "Because The Night", e "Fire", que acabou chegando ao segundo lugar das paradas de sucesso com as Point Sisters. Um dia Bruce trouxe uma nova música para o estúdio chamada "Hungry Heart" e quando ele passou a canção com a banda, concluiu que ela se encaixava nesse grupo e acabou perdendo interesse. A canção sobre a volatilidade dos relacionamentos tem a letra um tanto quanto sombria (onde um romance começa e termina na mesma linha) que é amenizada pela harmonia alegre. "Nós nos apaixonamos, eu sabia que tinhamos que terminar".
Mas Landau e Steven sabiam que a hora de ter um hit era agora, já que o cantor estava em seu quinto álbum e ainda não tinha nenhum hit pra chamar de seu. Então eles trabalharam para que isso acontecesse. Chamaram Mark Volman e Howard Kaylan, dos Turtles, para gravar os vocais de fundo e ajustaram a voz de Springsteen para soar um pouco mais juvenil e não parecesse muito madura para as rádios. "Hungry Heart" foi presença constante nas rádios dos Estados Unidos durante todo o outono, chegando ao número cinco das paradas e trazendo um novo público aos seus shows: as mulheres. Até aquele ponto, a plateia dos shows do Chefe era composta basicamente em sua esmagadora maioria por homens. A canção ficou famosa ao ponto de um mês após o disco ser lançado, a banda começar a tocar a introdução dela em um show em Chicago, o público entrar na frente do cantor e cantar o início da música, tradição que se estende até os dias de hoje nos shows do cantor.
A sétima música de "The River" é "Out in The Street", que nasceu com nome de "I'm Gonna Be There Tonight" nos ensaios de janeiro de 1980. Por meados de março, Springsteen finalizou a letra, mudando de nome a canção. Se pudéssemos reduzir a canção à uma frase, certamente seria: "A semana inteira você trabalhou duro, hoje à noite você vai se divertir".
"Crush On You" e "You Can Look (But You Better Not Touch)" se encaixam mais no tema "desejos da carne". Falando de "You Can Look" mais especificamente, Bruce usou a base de um outtake seu, chamado "Held Up Without A Gun". Uma outra versão, mais rockabilly, pode ser encontrada na Coleção The Ties That Bind, que é a mesma tocada durante a turnê Tunnel Of Love.
"I Wanna Marry You", a primeira canção de amor é a canção de amor mais pé no chão possível. Nada de romances, nada de fantasias. "Eles dizem que no final o amor verdadeiro prevalece / Mas no final das contas, o amor verdadeiro pode não ser um conto de fadas / Dizer que eu realizaria todos os seus sonhos seria errado / Mas talvez, querida, eu pudesse te ajudar a realizár-los".
A canção título conta a história de um jovem casal de namorados lidando com uma gravidez na adolescência em um país com a economia em recessão. Na verdade, Bruce não tirou essa história da cabeça, ele tirou da própria família. "The River" conta a história de sua irmã Virginia, a Mary da canção, e seu então namorado Mickey. A letra pergunta: "Um sonho é uma mentira se não se torna realidade, ou é algo pior?". Felizmente, no caso de Virginia, foi algo melhor. O casamento forçado virou um relacionamento que dura há mais de 40 anos.
É bom lembrar que durante a época de gravação de "The River", Bruce estava sendo bastante influenciado pela simplicidade e pelos assuntos da vida adulta de que a música country tratava. E foi uma canção de Hank Williams, "Long Gone Lonesome Blues", que também teve sua parcela de inspiração em "The River". Na verdade, primeira versão de "The River" se chamava "Oh Angeline", em que Bruce trabalhou por seis meses, até mudar a letra.
A melancolia de "Point Blank", a primeira música do segundo disco, também se baseia nas dificuldades da recessão de 1980, que atingiu os americanos. Bruce utilizou uma metáfora mais explícita: "Eles te atiraram pelas costas / Meu bem, à queima roupa". Composta durante as pessagens de som da turnê Darkness On The Edge of Town, é mais uma das canções que Bruce retrabalhou para o seu novo álbum
Retornando à diversão temos "I'm a Rocker", onde o cantor usa diversas referências da cultura pop americana enquanto se gaba e promete salvar o coração da sua amada: "Não chame o James Bond ou o Agente Secreto, pois eles não conseguem fazer como eu faço / Meu bem, eu sou um roqueiro". A versão original estava na terceira pessoa e se chamava "She's A Rocker".
Logo em seguida chega "Cadillac Ranch", mais uma canção referenciando carros na letra. Os carros na discografia do Chefe têm o mesmo significado do rio, referenciado na canção título. Os carros e o rio simbolizam a vida, que estão sempre indo para algum lugar, só que aqui as estradas não têm retorno.
Apesar do nome, a "Fazenda do Cadillac" não é bem uma fazenda, ela está mais para uma obra de arte que fica em Amarillo, no Texas, e tem vários Cadillacs, datados de 1943 até 1963, enterrados pela metade. É basicamente um cemitério de Cadillacs, e é justamente essa metáfora que o Chefe usa na canção, o inevitável encontro com a morte que todos teremos um dia, não importa em qual carro, estrada ou velocidade você corra: "Querida, você é o meu último amor, você é minha última chance / Não deixe que eles me levem para a Fazenda do Cadillac".
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Mergulhando novamente no mundo dos relacionamentos, "Fade Away" conta a história do amor de um casal se esfarelando, sumindo aos poucos. Danny Federici começa com o teclado, a banda entra e a canção termina com um Springsteen suplicando à sua amada que tê dê mais uma chance de fazer as coisas darem certas: "Me diga o que eu posso dizer, o que eu posso fazer / Pois eu não quero desaparecer".
Na mesma linha está "Stolen Car", só que aqui a sensação de desesperança no relacionamento toma conta e o protagonista, que está dirigindo seu "carro roubado" em meio à escuridão, espera ser pego, para que pelo menos ele não acabe desaparecendo na noite. Springsteen conta: "Essa foi uma das primeiras músicas que eu escrevi sobre homens e mulheres. Eu fazia a pergunta: 'Se você perde o seu amor, você perde a si mesmo?'"
Se no começo do álbum conhecemos a Annie Obscena, aqui na reta final nós conhecemos o Bruce Obsceno. Há um consenso entre os fãs que a música trata basicamente de sexo. E é meio difícil de argumentar, pois na letra o autor quer "'ramrod' com sua garota a noite inteira", e se você sentir a energia da música, a forma como o Bruce age no palco ao cantá-la e ver que a única tradução possível de "ramrod" é "vareta", pois bem...
Mais adiante temos "The Price You Pay". Gravada em quatro dias durante meados de 1979, ainda teve algumas alterações na letra antes de ser finalizada. Você está disposto a pagar o preço de suas escolhas? Assim como em Jackson Cage, a fúria atinge o ápice no final da música: "Agora você não pode fugir do preço que se paga".
A última canção de amor do disco é "Drive All Night". Também recuperada da época de Darkness On The Edge of Town, quem brilha é o saxofone de Clarence Clemons. Aqui o personagem declara que faria qualquer coisa para sua amada, até os seus gostos mais triviais, como dirigir a noite inteira para comprar sapatos para ela. Em "Drive All Night" Bruce é creditado no piano.
Finalizando o álbum está mais uma canção sobre a nossa certa mortalidade. Em "Wreck On The Highway", o personagem se depara com um acidente em uma rodovia e reflete sobre a possível morte dasquele jovem.
Sendo o rio a metáfora da vida, talvez essa seja a melhor maneira de encerrar o álbum. A jornada por essa terra pode ser dura e injusta, mas tem o seu valor, tem o seu aprendizado, assim como teve para Springsteen, que admirava a vida comum adulta e queria vivê-la mais do que apenas no campo da imaginação. Claro que no final das contas, a viagem que ele fez com seus personagens é apenas uma viagem:
"Como eu realmente vivo uma vida como aquela, em que eu faço os tipo de conexões de que eu tenho muito medo? Mas eu sinto que se seu não fazê-las, eu vou desaparecer ou me perder. Uma vida criativa ou uma vida imaginada, não é uma vida. É só uma coisa que você criou, é meramente uma estória. Uma estória não é uma vida, uma estória é só uma estória. Então eu estava tentando conectar tudo isso de um jeito que eu pudesse me salvar das minhas inclinações mais sombrias, me movendo em uma comunidade imaginada onde as pessoas estavam sofrendo com todas essas coisas, e essa era a comunidade que eu criei em 'The River'".
Você está convidado a refazer essa viagem hoje (17/10) às 20:00 no youtube da Bruce Springsteen Brasil. Serão duas horas juntos com o Bruce e com a E Street Band, do início ao fim do rio, com vídeos profissionais, áudios oficiais e até legendas em português.



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