Capítulo "Living Proof", da autobiografia Born to Run.
É um menino! Em 25 de julho de 1990, Evan James Springsteen nasce, às onze e meia da noite, no quinto andar do Hospital Cedars-Sinai em Los Angeles. Todos os véus de proteção caem, e derrubam-se, vencidas, todas as defesas, retiram-se todas as condições emocionais, todas as negociações terminam. O quarto se enche com a luz dos espíritos de família passados, presentes e futuros. O amor da companheira surge diante de mim como uma verdade inabalável, uma melodia esfuziante.
O amor — aquele mesmo amor que tanto se esforçou para demonstrar ou ocultar — foi arrancado à força, e a sua presença torna motivo de vergonha e descrença o que sentiu, enquanto, ao mesmo tempo, ilumina o que originou de bom. Todas as desculpas para lhe "proteger" por meio do isolamento, todas as razões apresentadas para a existência dos seus "segredos", do seu desdém, são arrasadas. Aquele pequeno quarto de hospital adquiria as dimensões do enorme edifício da sua contrição, da feliz penitência de toda uma vida; no entanto, aqui não têm tempo nem disponibilidade para as suas idiotices. Habita o corpo daquela que ama, os seus rosas e vermelhos de sangue, os tons cremes e os brancos da transcendência.
O espírito torna-se e sente um elo de carne e osso que lhe une à tribo, os vestígios do pó que se desprende da mão de Deus quando esta percorre a Terra. O rosto da Patti mostra sinais de cansaço, é inclusive a cara abençoada das santas que via na minha escola, e os seus olhos verdes teimam em se voltar para cima, fixos em algo atrás de mim. Não restam dúvidas: é essa minha mulher e com ela vem o som estrondoso da vida.
O rio revolto da minha ambiguidade, aquele zumbido baixo, sinal crônico do meu descontentamento, desapareceu por completo. O arrebatamento tomou o seu lugar. O médico me dá, então, uma tesoura e, após um mero corte, o meu filho está por minha conta. Deito-o na barriga da mãe, e ver o meu filho e a minha mulher num tão belo quadro transporta-me para bem longe dali, até um estado mental só meu e repleto de êxtase. Os três quilos e meio de prova viva nos aproximam um do outro. Somos um curto fôlego de noite e dia e, em seguida, poeira e estrelas, mas temos nas nossas mãos a nova manhã que despontará.
Criar vida nos enche de humildade, coragem, arrogância, de uma virilidade possante, confiança, terror, alegria, receio, amor, de uma sensação de calma e de ousadia temerária. Bem, e agora, não é tudo possível? Se conseguimos povoar o mundo, não o conseguimos criar e moldar? Em seguida, chega a realidade e, vem com ela, as fraldas e o leite em pó e as noites sem dormir e as cadeirinhas de criança e o cocô amarelo e o vômito que parece cream cheese estragado. Contudo... essas são as necessidades abençoadas e os fluídos do meu menino, e, no fim do novo e cansativo mundo marcado por dores de cabeça que constitui cada dia, nos sentimos exaustos, porém exaltados com as nossas identidades recém-adquiridas: as de mãe e pai!
Em casa, faço o turno da meia-noite e percorro quilômetros às voltas pelo nosso quarto minúsculo, até os seus olhos arregalados se fecharem um pouco e... adormecer. Deitado com o nosso filho sobre o peito, vejo como ele sobe e desce a cada vez que respiro, e me ponho à escuta e conto todas as expirações dos seus pulmões, e são ainda tão poucas que é possível contá-las. São uma oração aos deuses a que duvidei. Inspiro os seus cheiros de bebê, agarro-o delicadamente com as minhas mãos, sincronizo as nossas respirações e entro, em paz, no sono.
Os elevados níveis de endorfina decorrentes do parto vão desaparecendo, claro. Todavia, os seus vestígios permanecem conosco para sempre, as suas impressões digitais são uma prova indelével da presença do amor e de cotidianas ações nobres. Você faz a sua oração. Promete trabalhar para um mundo novo e cria alicerces de uma fé terrena. Você escolhe a sua espada, o seu escudo e o local onde cairá por terra. Independentemente do que o amanhã trouxer, essas coisas, essas pessoas jamais o abandonarão. O poder da escolha de uma vida, de uma amante, de uma convicção se fará sentir e atribuirá um sentido à sua história confusa. E, mais importante ainda, também estará presente quando você vacilar, quando se sentir perdido, e vai lhe dar uma bússola nova, que você guardará, protegida, no coração.
A partir de agora, a intensa força gravitacional que puxa você para o passado enfrentará um oponente poderoso: a sua vida atual. Juntos, Patti e eu fizemos com que um mais um fosse igual a três. Isso sim é rock 'n' roll. Essa nova vida me revelou que eu era mais que uma canção, uma história, uma noite, uma ideia, uma atitude, uma verdade, uma sombra, uma mentira, um momento, uma pergunta, uma resposta, uma invenção incansável produzida pela minha imaginação e pela de outros... Trabalho é trabalho... mas a vida... é a vida... e a vida supera a arte... sempre.
Bruce Springsteen - Livin' Proof (Legendado PT-BR)) from Bruce Brasil on Vimeo.
1 Comentários
A felicidade desta criatura, transborda e transpassa, emocionando a todos nós.
ResponderExcluirParabéns, Bruce Springsteen
Deus o ilumine